
Não era veneno que preenchia aqueles copos, mas escorria das barbas com o mesmo compasso fúnebre das bebidas que têm sede. As luzes davam um tom opaco ao ambiente e derretiam pelas paredes alaranjadas. Coisas específicas e particulares como o ritmo da música (uma espécie de marchinha indie), o clima mormacento e a cara daquelas pessoas uniam-se dando à luz uma atmosfera singularmente pesada. Dois ou três gatos circulavam entre as pessoas, esfregando suas carências nas pernas humanas e demais estruturas de suporte esparramadas pelo local. O cômodo inteiro exclamava um conflito por liberdade. A fumaça, bem lá em cima, demonstrava que tudo, enfim, era uma coisa só. E, quando Bernardo percebeu isso, tudo mais já era distância.
Na esquina do açougue do Benhur, tinha acontecido um acidente: Osvaldo, em seu terno verde-limão, subiu, com uma bicicleta de trilha, no capô de um Gol quadrado que aguardava para entrar na Dom Pedro. Bernardo era parte do caos, e, mesmo assim, era distância. Agia como se pudesse fugir, mas a consciência de ser onda atraía suas partículas, como que magneticamente, para o centro do caos. Após ser expelido aos empurrões, Bernardo deixou a casa das tigelas e retomou, enfim, sua caminhada.
Descendo até a baixada, Bernardo passou na frente dos bares da região da faculdade de letras e artes e caminhou em direção ao porto, levando sua embarcação no rumo de algum farol que indicasse um sentido. Ali, naquela mesma região, em frente ao Bar Cabernet, ancorada em uma mesa de madeira, Rita tomava uma cerveja, fumando momentos e suspirando a satisfação de ser e estar.
Rita tinha herdado o mundo de um mendigo, ainda na infância. Era dona, também, de uma expressão que indicava ter qualquer situação sob controle. Naquela noite, podia beber o quanto quisesse, segundo ela leu em um reflexo da lua, recém-nascida, parida pelo mar. Após apagar o cigarro, entrou no bar decidida a trocar a música que saía pelos alto-falantes (não suportaria sequer mais uma baladinha anos 90).
Bernardo ainda conversava com a noite, quando percebeu que, apesar dos passos dados e de todo o deslocamento espacial, talvez não tivesse se deslocado na dimensão temporal. Em posse da dúvida, andou mais um pouco. À frente do Bar Cabernet perguntou as horas para dois caras que compartilhavam uma mesa e a densa atmosfera típica dos romances nascituros. Pelo rompimento inesperado da conexão do casal iminente, recebeu um olhar ríspido de um dos caras. O outro pegou o celular e informou em que altura da madrugada aquele momento, estranho para todos os envolvidos, se inseria. Bernardo suspirou e agradeceu, sentando no meio-fio da calçada, em ato contínuo.
O Bar Cabernet não estava tão movimentado quanto nos dias de fim de semestre, contando com uma clientela regular, apesar do esvaziamento da cidade típico do recesso acadêmico. Por um instante, logo após a pausa do Kid Abelha, que antes ressoava motivos românticos, Bernardo, considerando a quietude ao redor, chegou a pensar em indagar novamente a respeito do tempo, mas, logo em seguida, como uma folha que dança ao som do vento, Rita saiu pela porta do bar levada pelo riff de Tony Iommi que introduzia Paranoid nos alto-falantes externos. Bernardo observou a leveza natural com que os movimentos de Rita contornavam o som e, quase sem perceber, abriu um sorriso puro. Leve, enfim percebeu que poderia fazer parte de uma fumaça maior. Rita ainda era fogo demais para ser fumaça. Bernardo flutuou, erguendo-se do meio-fio e dançou. Por um simples momento, compartilharam uma só combustão, até Rita incendiar a cidade toda e Bernardo se mesclar com as nuvens, se tornando unos com os sonhos e delírios da noite.